Gustavo Rezende 1
Juliana Monachesi
Por que essa fotografia, feita por Gustavo Rezende em 1996, não tem título?2 Na trajetória de um artista que já batizou obras com nomes tais como O paradoxo de Thompson Clark e os pesadelos de Mark (1999), Taj Mahal e a possibilidade do amor na era do cubo epistemológico (2000) ou Plumb e a vastidão do império (2002), este é um dado significativo. Seria porque a cabeça brancusiana, envolta em tiras de borracha, apoiada em uma caixa descartável de leite Parmalat—conjunto disposto sobre o que aparece ser uma bancada de cozinha com azulejos brancos ao fundo — já enuncia demais seu próprio significado?
Gustavo Rezende já afirmou, a respeito de seu trabalho escultórico, que não busca uma cisão no discurso moderno, mas, antes, procura juntar fragmentos de uma utopia despedaçada que foi nutrida pelo modernismo. Em Sem título (1996), é disso que se trata: a escultura — que a mim não para nunca de sugerir uma cabeça de Brancusi fraturada, que o artista cuidadosamente enfaixou — ganha pouso em uma prosaica embalagem industrial, equilíbrio frágil sustentado pelo ato fotográfico. A grade que serve de fundo lembra o grid modernista, cuja impureza o rejunte não cessa de denunciar (problema que a assepsia moderna só conseguiu resolver quando abandonou os azulejos por materiais sintéticos que recobrem e isolam, por inteiro, paredes e pisos de banheiros e hospitais). A caixa de leite, que não deixa de ser um índice de ganhos históricos para a saúde pública, assim como o foi a superfície de azulejo, ao mesmo tempo em que prolonga a validade do produto, gera um problema ecológico (outra questão que, com o avanço da tecnologia, foi resolvido pela substituição por material biodegradável). É como se, aos fragmentos de uma utopia, viessem se somar farrapos de outra. A era pós-moderna—cujo marco, na arte contemporânea, pode ser considerada a Brillo Box, de Warhol —, com a eclosão da diferença, a dimensão do tempo (ou a ubiquidade) e suas respectivas contrapartes — intolerância e aceleração vertiginosa da vida —, vê suas micro-utopias despedaçadas a cada minuto.
As respostas de Gustavo Rezende vêm em seus títulos: pesadelos, vastidão e cubos mágicos invariavelmente sem solução. Taj Mahal é a grande obra da arte brasileira da década de 1990: encerra a década da subjetividade e das micropolíticas com um enigma. Também, nessa obra, o artista agrega uma embalagem industrial, assim como em Plumb — escultura toda revestida de embalagens de produtos alimentícios. Uma espécie de ecologia cultural está em processo em toda a obra do artista, desde que a caixa de Prozac e o mármore de carrara se enfrentaram em Taj Mahal. Mas encontramos, antes, o embate da cabeça brancusiana com o invólucro da Parmalat. O título que falta é a chave do enigma para a clivagem na obra de Gustavo Rezende.
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1 Texto publicado originalmente em: hernández, Andrés i. m/soares, Carolina (eds.). Obras comentadas da Coleção do Museu de Arte Moderna de São Paulo.
São Paulo: mamsp, 2007.
2 A autora se refere à obra Sem título, 1996: Backlight em zinco: impressão em cores sobre transparência fotográfica montada entre duas placas de acrílico.
32,5 ∑ 34,5 ∑ 19cm. Coleção: Museu de Arte Moderna de São Paulo. Doação: Bayer s.a.
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[Texto publicado no livro Gustavo Rezende: Uma antologia por Tadeu Chiarelli. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.]