PENSIONE SEGUSO
VERVE Galeria
04 setembro - 11 novembro
2021
“A solidão mostra o original, a beleza
ousada e surpreendente, a poesia.
Mas a solidão também mostra o avesso,
o desproporcionado, o absurdo e o ilícito.”
Morte em Veneza, Thomas Mann
Foi nos anos 90 que o artista Gustavo Rezende esteve por uma temporada na cidade de Veneza, rodeado pela água, pela arte e pela história. Durante todo um outono viveu no bairro de Zattere, onde fica a Pensione Seguso, e por lá desenvolveu ideias e projetos. Criou-se aí um amor platônico pela cidade italiana que por vezes visitava, platônico no real sentido imposto pelo filósofo grego, que descrevia o amar como a maneira que nos leva a conhecer a essência dos coisas, as formas puras que existem no mundo das ideias. Trinta anos se passaram para que Rezende voltasse ao local do delito criativo. Em um restaurante ao lado da Pensione Seguso, ele pôs-se agora a fotografar durante uma noite com o celular. Assim, nasceu a série que intitula esta exposição na Verve Galeria, a primeira do artista no espaço que passa a representá-lo no circuito paulistano.
A mostra evidencia as mudanças que ocorreram em sua produção entre esses dois períodos, invadindo também o espaço físico nos arredores da pensão e a transformação da região, inclusive, como sociedade multicultural. Saem de cena os venezianos e o próprio rosto e silhueta de Rezende, que se replica em outras de suas séries consagradas, incluindo produções presentes nesta mesma mostra, para entrar a face de outros povos, que vivem e trabalham agora na cidade. A solidão do olhar de tais personagens resiste ali – não como sinônimo de tristeza, mas ensimesmados, quase delirantes e englobados nesse destino turístico que personifica o trânsito de pessoas de todo o mundo.
Por meio de tais imagens capturadas é que o artista encontra ainda um novo estilo a ser desmembrado. Em chapas de metal, cria tais perfis em estêncil, que ganham as paredes da galeria em seis elementos humanos, como retratos espontâneos. A antiga cidade é revista por formas contemporâneas, em um gênero pop usado em muros urbanos como forma de contrastar o antigo e o novo.
A contemplação e o olhar absorto são o elo que estruturam a mostra, em uma conexão entre o tridimensional (ou tendentes ao tridimensional, como em Relevo Laguna) e o bidimensional. Seus icônicos personagens, nominados muitas vezes como Maxwell, surgem também introspectivos em seu próprio universo, seja ele virtual, ao encarar a tela de um telefone celular, ou até de formas históricas, como em Maxwell vindo, escultura que nos remete aos longilíneos corpos surrealistas criados por Giacometti. O olhar reflexivo paira tanto sobre as obras, produções resultantes de quase dois anos pandêmicos em que fomos obrigados a viver de nossas memórias de forma enclausurada, quanto sobre o espectador, que agora se vê de volta aos espaços públicos, ainda sob vigilância, mas com certo poder de interação.
A investigação do universo cotidiano, um dos traços marcantes da obra de Rezende, segue presente, em um estudo meticuloso que articula uma geografia particular à vivência humana. Há um encontro interessante entre técnicas e narrativas empregadas pelo artista, que desenvolve um lugar onde as diversas referências que constituem sua obra, como a história da arte, a literatura e o cinema, são invocados, criando uma ambiência. Outro fator interessante que agrega a tal criação do ambiente expositivo é a presença da água: seja a que rodeia a cidade de Veneza como a que reflete a própria imagem dos personagens de Rezende, em posições narcísicas que se perdem ao encontrar o reflexo. É nessa solidão distraída que vivem os dois opostos, a beleza e o absurdo da vida e da arte.