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Gus e os Pequenos Animaizinhos

Fernando Oliva

Gustavo Rezende abraça carinhosamente sua escultura, uma representação do artista, e balança na diagonal o homem de 1,67 metro, mostrando como fazer para andar com ele pelo interior do ateliê, ainda maravilhado pelo acontecimento que foi a consumação da peça, depois de dias e dias desbastando a madeira e tentando extrair dali uma forma o mais parecido possível com sua própria configuração corporal.

Se em trabalhos anteriores o duplo era explicitamente representado (como em O Artista e o Mundo Animal, de 1991), vemos agora neste Gus e os Pequenos Animaizinhos uma imagem única. Dentre as novas possibilidades abertas pela obra, notamos que a figura do artista caminha decididamente para a frente, como a indicar um percurso livre de hesitações, aglutinando intenções e desejos enquanto marcha. Con- tudo, carrega na mão direita uma cenoura, chamariz para um grupo de roedores (castor, esquilo, lebre, cotia e ratão-do-banhado, também feitos de madeira pelo artista).

Em sua trajetória artística, as críticas de Rezende atravessam a história da arte e costumam passar por uma inteligente e sutil ironia (caso de Cara de Cavalo e o Drama da Arte, de 1992, que indicava a problemática inserção da obra de Helio Oiticica no mercado). Em Gus, o embate estabelecido entre a postura instável da “estátua” e o uso de um mate- rial pesado e nobre como a madeira não é gratuito. O artista se nega a valorizar as eventuais qualidades da madeira, deixando as superfícies nuas e nelas as emblemáticas “marcas do processo” (para usar um termo caro aos escultores modernistas) — aqui explicitadas pela ostensiva falta de acabamento.

Por seu título algo enigmático e por sua presença ambígua no mundo (não sabemos se trata-se de um ser inanimado prestes a adquirir vida, ou se vemos o triste castigo de um humano condenado pelos deuses à imobilização) a obra nos transporta ao universo da mitologia e das fábulas. Mais diretamente, a situação remete à célebre iconografia de São Francisco de Assis, o bondoso santo conhecido por ser amigo dos animais. Mais uma vez Rezende parece arquitetar uma estratégia carregada de bom humor e ironia, ao transportar Gus para a “cova dos leões” que é uma galeria de arte comercial. E que os tais animaizinhos, no lugar dos inofensivos gatos e pombos da parábola bíblica, sejam roedores selvagens que mais se assemelham a ratos.

[Texto publicado no livro Gustavo Rezende: Uma antologia por Tadeu Chiarelli. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.]

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