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Jamais fomos pós-modernos ou Maxwell está chegando

Juliana Monachesi

Thompson, Mark, Allan, Gus e Maxwell são alguns dos enigmáticos personagens das esculturas de Gustavo Rezende, todos esculpidos à imagem e semelhança do próprio artista. Tal como Antony Gormley, Rezende se vale do próprio corpo como medida de todas as figuras humanas que habitam suas obras, mas, assim como o artista britânico, não imprime qualquer conotação biográfica aos seus trabalhos nem se filia aos discursos da intimidade ou subjetividade que imperaram na arte dos anos 1990—apesar de ter surgido no cenário da arte brasileira justamente nesta década. Ambos os artistas se retratam em suas obras por puro e simples humanismo. Diferente de Gormley, entretanto, o artista acrescenta um dado de fabulação e narrativa aos trabalhos, por batizar algumas obras com nomes próprios (e anglicanos), tornando Thompson, Mark, Allan, Gus e Maxwell personagens seus.

Some-se ao enigma dos personagens o hermetismo dos títulos de Gustavo Rezende: Os Paradoxos de Thompson Clark e os Pesadelos de Mark (1999), Allan e o Rouxinol (2000), Taj Mahal e a Possibilidade do Amor na Era do Cubo Epistemológico (2001), Plumb e a Vastidão do Império (2002) e assim por diante. Impenetráveis, estes títulos agregam sentidos às obras do artista e também confundem o sentido primeiro que se poderia depreender das obras em questão. Além disso, dão conta da natureza aditiva da operação comumente empregada por Rezende na criação de suas peças. A ideia do duplo, a tautologia e uma noção de tempo cíclico perpassam sua pesquisa estética.

Investigador incansável das implicações contemporâneas do tridimensional, Rezende realiza até fevereiro sua segunda individual na galeria Marília Razuk, Maxwell Vindo. A primeira exposição individual na casa nova, em 2009, recebera o nome Crepe Sexy Thing, título da instalação feita com relevos de fita crepe sobre as paredes, que continham narrativas picantes. Em Maxwell Vindo, Rezende ocupa as paredes com nova instalação, de caráter mais bucólico e contemplativo, que desta vez serve de ambientação à escultura em tamanho natural que retrata Maxwell como engrenagem de uma superestrutura pós-industrial e arcaica a um só tempo.

O diálogo com o arcaico na obra do artista não é um interesse recente. Nos objetos do início dos anos 1990, em geral duplas idênticas de peças de parede expostas lado a lado sob um título também duplo—como O Imperador e seu Dorso (1991), O Artista e o Mundo Animal (1991) ou Cara de Cavalo e o Drama da Arte (1992)—, Rezende explorava formas imemoriais como figuras geométricas ou orgânicas reconhecíveis e sempre presentes na iconografia da arte. Nos últimos anos, um arcaísmo de outro tipo passou a figurar nas pesquisas do artista, a que fizeram alusão trabalhos como a videoinstalação A Natureza do Amor e a Passagem do Tempo (2002) e os auto-retratos da série Estampa (2001). Trata-se de uma reflexão sobre um mundo perto de se extinguir: aquele que o artista testemunha nas viagens para o interior de Minas.

Por mais urbano (e paulistano) que seja, Gustavo Rezende nunca deixou de repensar e reconstruir sua visão da paisagem de origem.
A imagem do caipira figura no vídeo A Natureza do Amor e a Passagem do Tempo, por exemplo, assemelhando-se muito a uma representação de Almeida Jr., indiferente à performance silenciosa do artista ao seu lado, que encena um embate dramático entre natureza e cultura. Em um auto-retrato feito com carimbos, que estampam burocraticamente o antigo endereço do artista em São Paulo, a imagem que se forma mostra Rezende usando um chapéu de caipira, com semblante sereno, bem diferente da expressão facial que ele costuma sustentar nos auto-retratos fotográficos, como Retrato do Artista Quando Jovem (1998) ou mesmo Os Paradoxos de Thompson Clark e os Pesadelos de Mark.
Em Maxwell Vindo, e novamente fazendo uso de carimbos—que desta vez estampam folhagens rebuscadas—para constituir um desenho, Rezende traz para o domínio da arte uma paisagem mineira pouco típica, sem montanhas, só horizonte. A evocação do campo nada tem de nostálgica. Ela funciona esteticamente, gerando esse horizonte que baliza a percepção das distâncias e do movimento de ir-e-vir do personagem cuja chegada iminente está expressa no título da exposição. Além disso, essa paisagem arduamente formalizada indica um sentido latente em todas as obras da mostra (e muito possivelmente presente em toda a produção escultórica do artista), o de uma ética do trabalho, o da inscrição na obra do processo mesmo que a engendra e constitui.
Uma tal integração do arcaico ao espaço virtualizado do discurso hiperconceitual da arte contemporânea, aliada a uma máxima de Rezende proferida há exatos dez anos, quando afirmou em uma entrevista—respondendo uma pergunta sobre seu interesse de cindir o projeto da escultura moderna—, “eu não procuro uma cisão, eu junto fragmentos de uma utopia despedaçada, que foi nutrida pelo modernismo”, só pode significar uma coisa. Que jamais fomos pós-modernos. Diante do conjunto de obras de Maxwell Vindo, torna-se evidente o compromisso de Rezende com um regime estético que leva a cabo o embate entre um modelo representativo e a absoluta potência do fazer, que opõe e identifica saber e não-saber, agir e padecer, para falar com Jacques Rancière.
Impõe-se, neste contexto, recolocar toda a sua produção em perspectiva e refletir sobre o sentido desta arte. Aliás, sobre o sentido da arte de toda uma geração, surgida nos anos 1980 e 1990, à qual se atribuíram rápido demais—e de modo empacotado por importação—as características do pluralismo historicista e do ecletismo estilístico. No que concerne o trabalho de Gustavo Rezende, duas obras magistrais — a fotografia montada como backlight Sem Título (1996) e Taj Mahal e a Possibilidade do Amor na Era do Cubo Epistemológico (2001) —, no mínimo, dão conta do empenho do artista em juntar os cacos do modernismo e fazê-lo trabalhar para gerar novos significados e reverberações que façam sentido nos tempos de hoje. A exposição na galeria Marília Razuk é uma oportunidade ímpar para refletir sobre esse estado de coisas e para se aprofundar na pesquisa deste artista invulgar.

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[Texto publicado no livro Gustavo Rezende: Uma antologia por Tadeu Chiarelli. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.]

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