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Gustavo Rezende e a determinação de continuar

Tadeu Chiarelli

Ao refletir sobre os textos que se seguem, o leitor perceberá que em todos é recorrente a ênfase que seus autores concedem aos títulos de grande parte das obras de Gustavo Rezende, salientando o caráter dúbio, hermético mesmo de todos eles.

De fato, como salientou Regina Teixeira de Barros em texto de 1997 (aqui republicado), tão importantes quanto as obras propriamente ditas — ou seja, as peças produzidas pelo artista — os título a elas conferi- das, segundo a autora, “lançam o observador para outra dimensão: a do jogo intelectual. É o título que fisga o observador e propõe enigmas a ser, se não resolvidos, pelo menos progressivamente elaborados”.

Creio que esta consideração de Regina poderia servir de mote para algumas observações que talvez ajudem a ingressar no universo poético de Gustavo. Não para exauri-lo e esgotá-lo (o que, além de impossível, não seria desejável), mas para trazer, quem sabe, outros dados para tornar ainda mais evidente o interesse de sua poética (embora nenhum texto vá cumprir o que é cumprido com tanta galhardia pelo artista por meio, justamente, de sua produção).

Regina, na frase citada, ao sublinhar que são os títulos os responsáveis pelo início do “jogo intelectual” para o qual é lançado o observador, depois de ler o nome de determinada obra, talvez não tenha levado em conta que esse jogo teria seu início, de fato, no momento em que o visitante associa o título da obra a ela propriamente dita, ali na sua frente. Neste sentido, poderia ser dito que grande parte das produções de Gustavo são as peças tridimensionais (ou tendentes ao tridimensional, dependendo do caso) e seus títulos (“As peças e seus títulos” cairia muito bem para designar uma obra de Gustavo...).

E isso porque o jogo intelectual (como sugeriu Regina) começa, é certo, no momento mesmo em que aparece aos nossos olhos uma obra dividida em duas peças, se não iguais, pelo menos praticamente idênticas. Uma ilusão de ótica? Absolutamente não. São duas peças iguais, lado a lado e que, desde o princípio, não podem ser confundidas com um díptico. E isto pela simples razão de, por um lado, a noção de díptico estar filiada mais ao universo da produção pictórica e, por outro, pelo fato de, no universo do bidimensional, a “composição” tender, pelo menos na maioria dos casos, a se expandir pelos dois elementos que o compõem. Mesmo levando-se em conta que parte significativa dos “duplos” que Gustavo produziu no início da carreira se comporta mais como pertencente ao universo do bidimensional (afinal de contas são relevos), o artista não se vale de um único pensamento plástico, dividido em duas partes mas, justamente de uma forma plástica e a mesma forma plástica, repetida.

Porém, quando lemos o título da obra, talvez até de maneira inconsciente, percebemos operações de conexão e adição embutidas nas duas formas ali na nossa frente. É como se um “e” imaginário estivesse postado entre as duas formas. No entanto, o problema, ou o “jogo”, torna-se mais complexo quando, ao lermos o título da obra — por exemplo, O Soberano e seu Dorso—, notamos que a operação de conexão percebida nas duas formas, são contraditas no título. E isso pelo fato de que, se ao ver as duas formas as percebemos como substancialmente iguais, o mesmo não ocorre quando lemos o título. E isso porque “O Imperador” e “seu Dorso” não são expressões equivalentes, nem quanto aos significantes e — pelo menos num primeiro estágio de análise — aos significados.

Atentei no parágrafo acima para o fato de que, em termos de significado, “O Soberano” não equivale a “seu Dorso”, (pelo menos numa primeira

abordagem porque, numa segunda, ou seja, no aprofundamento da questão eles podem sim, ser entendidos como equivalentes). No entanto, mesmo que os dois termos equivalham para o artista—e parece que sempre equivalem —, para o observador-leitor, essa operação de equivalência, por possuir uma dimensão que tange, muitas vezes, o paradoxal, em grande parte das situações, é aparentemente impossível de ser compreendida. E aceita. Frente às obras-texto de Gustavo, a maioria dos observadores pode se frustrar porque, frente ao que parecia ser uma simples demonstração de uma operação de conexão ou de adição por equivalência, acaba por revelar-se um enigma. Assim, o que era certeza torna-se dúvida.

A frustração frente aos trabalhos de Gustavo se dá porque o artista trabalha sempre com a descrição e a fabulação do que descreve. O Imperador e seu Dorso, queiramos ou não, aceitemos ou não, é a descrição do que, para Gustavo, é uma evidência, assim como Taj Mahal e a possibilidade do amor na era do cubo epistemológico (para Juliana Monachesi, em texto de 2007, aqui coligido, seria “a grande obra de arte brasileira da década de 1990: encerra a década da subjetividade e das micropolíticas com um enigma”) também o é. No entanto, ao mesmo tempo em que essas obras (aqui entendidas em sua condição integral de matéria e texto/título), se configuram como aparentes enunciados lógicos e precisos, elas fabulam sobre si mesmas.

Outro elemento que poderia corroborar este argumento (as obras de Gustavo = descrição e fabulação) é a maneira como o artista evidencia, sobretudo em seus trabalhos dos últimos anos, sua constituição material. Neles percebemos—aliás, como bem notou Fernando Oliva em texto de 2004, aqui agregado—as “marcas do processo”, ou a verdade do material usado pelo artista, em suas produções em madeira (e também em bronze), nas quais a “ostensiva falta de acabamento”—para usar outra expressão de Fernando—realça a dimensão descritiva que funciona como um potente resíduo modernista em sua produção. A falta de acabamento, as marcas do processo e a “verdade” do material apontam para o caráter descritivo do “texto” do artista, embora tal peculiaridade seja negada sempre, pela estrutura fabular presente nos títulos e, de maneira nítida, na própria composição de alguns trabalhos — Gus e os pequenos Animaizinhos (2004) pode ser um bom exemplo.

Seria importante contrapor àquele dispositivo “modernista” que caracterizaria sua produção mais recente, outra singularidade que marcou sua produção do final dos anos 1990 e do começo da década seguinte, já discutida por Felipe Chaimovich em texto anexo.

Publicado em 1999, nele, Felipe chama a atenção do leitor para uma propriedade da obra Thompson Clark e os pesadelos de Mark (1999, acervo mamsp):

“A estilização publicitária é buscada pelo artista, tanto na composição das imagens quanto na caracterização do objeto. A pose hierática e o mutismo arrogante dos pilotos sugerem slogans de produtos viris e contemporâneos; as dimensões naturalistas da impressão sobre papel e a montagem industrial, o impacto dos cartazes efêmeros”.

Na sequência, Felipe enunciava outra importante afirmação sobre uma característica do trabalho de Gustavo, após atentar para o caráter hermético do título da obra em análise: “Gustavo Rezende explora, assim, o abismo comunicativo entre o sentido subjetivo dos títulos e a compreensão pública das obras. Entre paradoxo e pesadelo, a obra nega ao espectador qualquer esclarecimento discursivo sobre o tema”.
Em 1999, portanto, Felipe também sublinhava o caráter de negatividade, típico da produção de Gustavo, base para a frustração protéica que surge sempre em todos aqueles que querem “entender” suas obras. Mas o que gostaria de frisar neste texto de Felipe é a argúcia lá contida ao decifrar esse desejo de Gustavo em querer (e não querer) que sua obra alcançasse uma dimensão pública, que a fizesse escapar do confinamento da arte instituída, utilizando-se para isso de estratégias publicitárias. Antes, no entanto, de O paradoxo..., Gustavo já havia se utilizado de procedimentos vindos do universo da publicidade. Sem título (1996, mamsp), Retrato do artista quando jovem (1998) e Nine feet sculpture (1998, mac usp) levavam para o campo da poética do artista, o dispositivo publicitário — o backlight —, concebido para tornar as imagens de consumo mais atrativas.

Nas três obras mencionadas, além do fato de terem sido produzidas a partir de fotografias colocadas sobre backlights, todas fazem referência a outro universo, além daquele da publicidade: as artes plásticas. A obra sem título, pertencente ao mamsp, é uma escultura, assim como aquela pertencente ao mac usp. Já Retrato... é uma pintura, ou melhor, nitidamente deriva de forma direta da tradição pictórica.

O que interessa salientar ao tratarmos dessas obras é que elas são imagens de obras de arte (esculturas, pintura), que apenas ganham corpo por meio de dispositivos tradicionalmente assimilados como pertencentes ao mundo publicitário (a fotografia, o backlight).

Se mais tarde, como visto, Gustavo investirá na erupção de esculturas que descrevem a verdade de seus procedimentos e materiais, nos trabalhos comentados acima o artista parece atestar que a arte—como entende o senso comum—apenas pode ser percebida e entendida dentro de processos técnicos que não são tradicionalmente seus. Procedimento semelhante o artista usaria para a produção de Hero (2001), posterior a Paradoxos...

Em Hero — já comentada por mim em texto de 2001, anexo —, ao invés de Gustavo produzir uma “vídeo-arte” sobre um atleta (ele mesmo) nadando, prefere conceber um painel mecânico e cinético—comum nas cidades brasileiras, entre o final da década de 1990 e início dos anos 2000—, voltados para a praticidade de apresentar alternadamente três anúncios publicitários num mesmo espaço. Observando a movimentação vagarosa do conjunto de triedros, percebemos “a figura movendo-se na água, como um modelo de publicidade (...) ou um atleta prestando- se a qualquer tipo de venda”.

Por que não fazer uma “vídeo arte”? Talvez também pelo fato de, então, não perceber a possibilidade de produzir arte dentro das vertentes institucionalizadas, mesmo as “de ponta”. De toda forma, em Hero também é notável como a imagem está literalmente grudada em um dispositivo publicitário para que possa existir com alguma (suposta) eficácia.

Outro dado importante a ser levantado é o fato de que tanto Retrato... quanto Hero, produzidas, como vimos, no clima de uma certa descrença com a infalibilidade da arte (daí, portanto, a necessidade de recorrer a estratégias publicitárias), são autorretratos.

O uso que Gustavo faz da imagem do próprio corpo para desenvolver sua produção desde, pelo menos, Retrato, traz componentes que tornam ainda mais complexa sua poética.
Sobre este assunto, é preciso frisar que nenhuma obra na qual Gustavo representa a própria imagem é denominada “autorretrato”. Os autorretratos, ou as imagens de Gustavo, quando surgem (e surgem quase sempre em suas obras), são denominados “retratos” ou ainda “herói”. Podem até serem denominados com nomes próprios: Maxwell, Allan, Thompson, Gus... Mesmo “Gus” — que pode ser lido como o diminutivo do nome do artista—, é tratado como um outro, embora concebido à sua semelhança. Assim, sua autoimagem quando representada não está apenas encarnada em uma materialidade que não é a sua (Gustavo, decididamente, não é um performer ou, pelo menos, não um performer comum). Todo artista que produz uma imagem tradicional de si mesmo, encarna-a em outro corpo (o corpo da pintura, do papel, da madeira etc.), mas Gustavo parece não se contentar com apenas este aspecto de projeção, porque projeta sua imagem em outros que não são ele mas, segundo suas palavras, não deixam de sê-lo também. Perguntado abruptamente se Maxwell, Allan, Thompson Clark e outros eram nomes que inventava, ou eram ele mesmo, Gustavo respondeu:

“Não, não acho que sejam eu, mas [ali] também tem eu. Às vezes é meu corpo, mas é claramente outra pessoa. Cada nome veio de um fato, de uma experiência. O Thompson é um filósofo, o Mark um amigo. São momentos poéticos. Quando tem nome de gente é super cool, quando não tem, é uma ideia. Tudo é a respeito de uma ideia de sujeito, verbo e predicado... vendo agora, desse momento”.

Sobre sujeito, verbo e predicado. Ou seja: tudo parece ser feito para organizar a existência, dar sentido — mesmo que fugaz —, ao fato de se estar no mundo. No caso de Gustavo, estar no mundo a partir de uma presença múltipla, complexa, repleta de fabulações.

[Texto publicado no livro Gustavo Rezende: Uma antologia por Tadeu Chiarelli. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.]

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