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Algumas considerações sobre a obra de Gustavo Rezende e os portos menos inseguros

Tadeu Chiarelli

Dois trabalhos de Gustavo Rezende me interessaram bastante: Retrato do artista quando jovem (1998) e Hero (2001).
O primeiro, um pequeno backlight que, quando aceso, apresenta uma foto do rosto de Rezende com um gorro azul na cabeça. A semelhança com retratos e autorretratos produzidos por artistas dos séculos xv e xvi não é mera coincidência; a referência ao livro de James Joyce também não. Seu formato reduzido e a imagem luminosa que surge quando se aperta o discreto dispositivo transformam a peça quase em uma espécie de relicário. O contraste entre a atualidade do design do aparelho e as ressonâncias seculares da imagem apenas aumentam o interesse da pequena obra. Na foto o artista parece enfrentar o mundo com voluntariosa serenidade, mirando os olhos do observador, cara a cara.

Em Hero — composta por três fotografias digitalizadas, secionadas e dispostas em triedros que, por sua vez, são acoplados a um aparelho que os move lentamente — são vistas três cenas de um atleta nadando.
O trabalho configura-se como um painel mecânico, desses que começam a povoar as grandes cidades e servem, normalmente, para num mesmo espaço apresentar três mensagens de publicidade em reduzidos intervalos de tempo. Acompanhando a movimentação lenta dos triedros, percebe-se a figura movendo-se na água, como um modelo de publicidade de academias de ginástica ou um atleta prestando-se a qualquer outro tipo de venda. Em uma das três fotos percebe-se com alguma dificuldade, é certo, que o atleta ali retratado é o próprio artista. Seus olhos parecem esvaziados de vida, tapados pelos óculos negros; a boca aberta, e a expressão geral concentrada no esforço de levar adiante sua empreitada.

Essas duas peças talvez sirvam de emblemas para uma das inúmeras questões que a poética de Rezende sugere: a busca de um lugar para o artista e a arte na sociedade contemporânea.
Até meados do século passado, a arte e o artista possuíam—contra o império da subjetividade individual—programas que, validados social- mente, permitiam o estabelecimento de atuações artísticas e estéticas definidas, voltadas para a transformação da realidade social e política. Nas últimas décadas, no entanto, o quadro mudaria. Com a falência progressiva daqueles projetos e, assim, sem parâmetros a seguir, o artista via-se aprisionado em sua própria subjetividade, diante de uma sociedade em processo vertiginoso de transformação.

A sociedade atual, mais do que nunca, encontra-se esvaziada de valores e projetos que direcionavam as ações de vários artistas no decorrer do último século, além de estar sendo regida por mecanismos de controle que se manifestam em todas as áreas do cotidiano. Vivemos numa sociedade controlada e mediada de maneira avassaladora pelos meios de comunicação de massa, nos quais as imagens, que um dia possuíram alguma aderência ao real, agora proliferam a partir de si mesmas, substituindo a própria realidade.

Nesta situação—que faz o contexto onde surgiu o pop art uma espécie de paraíso perdido—o artista e a arte, reduzidos à sua própria subjetividade devido à falta de qualquer projeto a seguir, parecem deslocados de qualquer lugar dentro da sociedade, destituídos de qualquer significação maior. O que significa ser um artista no início do terceiro milênio?

As duas obras de Gustavo Rezende parecem buscar responder — ou problematizar de vez — a questão: deve o artista seguir agindo como aquele

que enfrenta o mundo, insistindo em reivindicar para si o lugar de ordenador do real (como Rezende aparece em Retrato do artista quando jovem?). Ou, consciente da realidade atual — totalmente enformada pelos meios tecnológicos de comunicação e reprodução de imagens—, deveria fundir-se deliberadamente nessa mesma realidade, tornando- se uma simples imagem... puro e verdadeiro índice de mais uma mercadoria consumida (como é o caso de Hero)?

Pode-se dizer que a poética que Rezende desenvolve cresce tensionada entre estes dois modelos conflitantes. Na verdade, tal dualidade significa a crise vivida por todo artista plástico contemporâneo, pressionado entre o conceito tradicional do artista como criador—aquele que dá forma à matéria do mundo — e do artista como criatura — totalmente condicionado por uma estrutura sociopolítica que o antecede, transcende e, de certa maneira, prescinde dele.

Como continuar preocupado em criar formas e imagens, numa sociedade mediada por sistemas que afirmam a cada instante, que tudo já foi dito, nos quais o indivíduo parece ser nada mais que um número dentro de uma rede de estruturas que o ignora?

No caso específico de Rezende, o uso da imagem do próprio corpo parece não sugerir um mero exercício narcísico, mas uma estratégia para garantir, mesmo que minimamente, uma espécie de local—ou um porto menos inseguro — de onde partir para falar deste e neste mundo, onde Rezende (como todos nós, aliás) é agente e paciente.

Os retratos de Gustavo Rezende aqui comentados são de naturezas bem distintas, embora possuam uma equivalência: retratam o rosto do artista, o que, tradicionalmente, sempre foi reconhecido como “espelho da alma”.

Se em Hero, Rezende se vê nas fotografias — que seguramente não foram tiradas pelo artista—ao mesmo tempo em que os outros o veem, na peça de 1998, a foto revela nitidamente ele se retratando, se observando e reconhecendo o mundo por meio de sua própria aparência.1 No entanto, apesar dessas diferenças tão flagrantes, as duas peças possuem outro dado que, aliado àquele de fazer referência ao rosto do artista, as torna irremediavelmente equivalentes: mesmo que em Hero as ressonâncias de uma “inteligência escultórica” sejam evidentes, e que, em Retratos... a presença da pintura seja um fato, as duas obras são fotografias ou, pelo menos, têm suas origens mais remotas no dispositivo fotográfico. A obra de 1998 foi produzida com um cromo, e as 3 fotos de Hero, digitalizadas.

Nos primeiros momentos de sua carreira, Gustavo Rezende se manifestava por meio da pintura. Logo depois, no entanto, em sua poética foi evidenciando-se a escultura; a fotografia surgiu, com maior densidade, no final da década passada. Dentro dessa trajetória — e Rezende a compartilha com vários artistas, no Brasil e no exterior — poderia ser levantada a seguinte questão: por que um artista que possui familiaridade com meios expressivos mais tradicionais, como a pintura e a es- cultura (sendo, inclusive, reconhecido como um dos mais interessantes escultores de sua geração), passa a se manifestar, também, por meio da fotografia, chegando, inclusive, a produzir esses dois autorretratos? A imagem fotográfica vem sendo usada com maior vigor pelos artistas plásticos desde meados dos anos 1960. A partir dos anos 1980, no entanto, essa situação se intensifica ainda mais, tornando clara uma verdadeira crise no campo das “belas artes”. Poderia ser dito que o uso crescente da fotografia por artistas plásticos deve-se ao imediatismo do processo fotográfico, ante o processo pictórico e outros. Talvez esse caráter da fotografia tenha seduzido aqueles artistas preocupados em refletir visualmente sobre a sociedade contemporânea, imersa numa “realidade” tão fugidia.
No entanto, a fotografia possui uma característica mais problemática, que talvez tenha contribuído com maior intensidade para o incremento de seu uso pelos artistas. Ela, certamente mais do que a pintura, tem a capacidade de representar qualquer coisa com um alto poder de descrição, repleto de detalhes, transformando em presença extremamente poderosa aquilo que é, irremediavelmente, ausência. Como certa vez pronunciou Barthes, a única certeza que temos quando observamos um retrato fotográfico é de que alguém (ou algo) esteve ali em frente à câmara. A partir dessa afirmação, poderia ser acrescentado que, em certa medida, não mais interessa a identidade daquele alguém, porque esse alguém não está mais ali. O que se dá ao nosso olhar é, simplesmente, uma espécie de sombra de um indivíduo à mercê de olhares futuros. Também poderia ser acrescentada outra certeza àquela enunciada por Barthes: quando olhamos uma fotografia, também sabemos que alguém esteve atrás da câmara... e não importa, em última instância, quem era esse alguém.
Na fotografia, essa tendência irreversível ao anonimato, tanto por parte do retratado quanto do retratista, talvez se deva ao caráter irremediavelmente planar da superfície fotográfica, imune a qualquer topologia real, contendo-se apenas em seu caráter referencial.
O retrato, quando pintado, guarda em sua materialidade constitutiva sinais inquestionáveis de um fazer determinado, de uma autoria; o retrato fotográfico, não, por mais “autoral” que possa ser o enquadramento, o agenciamento da luz e da sombra etc. Parece ter sido por esse caráter mais propenso à “impessoalidade” que a fotografia começou a ser explorada, com tamanha intensidade, desde os anos 1980, por artistas das mais diferentes origens “expressivas” (pintores, escultores etc.). Por meio dela, eles questionam o próprio estatuto que a imagem fotográfica foi assumindo nos últimos anos e, dentro desse contexto, também os estereótipos sociais e políticos que regem a sociedade de massa na qual vivemos. Gustavo Rezende, em Hero e em Retrato..., portanto, opera com os estereótipos do artista veiculados por esta sociedade e, ao fazê-lo, parece destacar a condição angustiante dessa situação bipartida e paradoxal entre o artista-herói, que enfrenta o mundo como criador, e o artista-herói, que se lança ao mundo como mercadoria...
Como agir nessa situação de encurralamento, como exercer o ato de criação dentro desse espaço exíguo de manobra?

Tradicionalmente é sabido que, desde muitos séculos, o retrato funciona como uma espécie de duplo do retratado. Sua função é, em muitos casos, tomar o lugar daquele que é sinal. Por sua vez, uma característica marcante na produção escultórica de Rezende são suas peças duplas, quase sempre intituladas com nomes e/ou frases duplas: O imperador e seu dorso, O artista e o mundo animal (ambos de 1991), Cara de cavalo e o drama da arte (1992/93), O paradoxo de Thompson Clark e os pesadelos de Mark (1999), entre outros.

Caso se atente para os títulos dessas obras, verifica-se que quase sempre se iniciam com um nome seguido por outro nome ou frase que, supostamente, fecharia o sentido pretendido inicialmente pelo artista. Porém, ao se observarem as obras em si, percebe-se que os elementos unidos ou colocados lado a lado tendem a ser absolutamente iguais, funcionando como reflexo um do outro. Ou como duplos. Duplos de si mesmos, ou uma metáfora e seu duplo (o que não deixa de ser um bom título para um trabalho de Rezende).

Do ponto de vista formal, essas peças guardam ressonâncias “pós-minimalistas”—o conceito de módulo, a pobreza do material e certa manualidade estão ali presentes. Porém, o fato de se apresentarem sempre em dois módulos e possuírem títulos compósitos já, de imediato, retira qualquer possibilidade de serem analisadas apenas formalmente. Aqui estaria outro elemento fundamental do trabalho de Gustavo Rezende: essa impossibilidade de ser tratado apenas dentro do campo formal. Essa característica, por sua vez, parece estar extremamente vinculada àquela perda de programas e projetos, mencionada acima.

Consciente da falência de todos os projetos gerais que determinaram as ações da sociedade e da arte até meados do século passado, Rezende volta-se para sua própria subjetividade; subjetividade essa em embate constante com uma realidade totalmente mediada pelos meios tecnológicos de reprodução de imagens que o cerca.

Sem parâmetros “de fora” — ou com todos os antigos parâmetros agora transformados em meros significantes destituídos de conteúdos — cabe a Rezende buscar, dentro de suas próprias referências e predileções, as bases para uma produção que pelo menos denuncie e seja a ampliação desse embate comum a todo artista contemporâneo.

Neste caso, as referências podem ser autobiográficas apenas ou se originarem das mais diferentes fontes, cabendo a Rezende mesclá-las, dando significado não mais restrito à aparência formal da peça que concebe, mas, igualmente, ao próprio título que a ela confere.

Dentro do imenso universo de referências de que se serve Rezende (literatura, filosofia, o cotidiano...), uma parece ser reiterada a cada peça concebida pelo artista: a história da arte. Já foi feita referência à relação estreita entre Retrato... e a retratística renascentista. No caso de Hero, além da evidente apropriação da iconografia publicitária (inserida na história da arte via a pop art), o desenvolvimento vagaroso dos triedros que estruturam aquela peça remete o espectador — não sem alguma ironia — aos relevos da op latino-americana.

Por sua vez, em O imperador e seu dorso, nota-se uma “vontade de forma” que, ao invés de manter a peça imersa nas formulações artísticas e estéticas da segunda metade do século passado, a empurra para mais atrás: para as esculturas de fragmentos anatômicos do início do modernismo internacional, ou para os pedações de esculturas clássicas, ou mesmo arcaicas. A história da arte sempre esteve presente na poética de Gustavo Rezende. É dentro dela que o artista, preferencialmente, se move para o desenvolvimento de sua produção. E o verbo “mover”, aqui aplicado, não é uma mera figura de linguagem. Rezende se move com seu corpo (ou com sua imagem) e a história da arte atua como se fosse parte do corpo do artista: a curta extensão de seu porto menos inseguro. Emparedado no universo de conceitos, formas e imagens transformados em puros significantes que constituem hoje essa história, engolido por ela, Rezende como que tenta emitir sinais de uma subjetividade tão particular, que insiste em não ser tragado totalmente.

Em Hero, a noção do artista como mera mercadoria de consumo é problematizado pela fina ironia da peça, perceptível, sobretudo, pela referência sutil à arte cinética latino-americana, tão cara a certo colecionismo que ajuda a estruturar as regras do mercado brasileiro de arte atual. Rezende, por meio de vários de seus trabalhos, mescla sua subjetividade à história

da arte — e, sobretudo, aquela brasileira — para, ao fazê-lo, criticar seus mitos e, por essa crítica (e por que não dizê-lo?), de alguma maneira, legitimar sua práxis nesse mesmo território.
Dentro dessa tática, um dos seus alvos prediletos tende a ser a herança construtiva na arte brasileira e da América do Sul. Alguns de seus trabalhos se colocam como uma espécie de dramatização mordaz (porém, nem um pouco, menos séria ou pertinente) não daquelas correntes construtivas propriamente, mas do caráter mítico assumido por ela e do processo de mistificação que o sistema de arte local acabou por lhe conferir. Neste sentido, Cara de cavalo e o drama da arte parece emblemático. Dois relevos de madeira, triangulares e invertidos sugerem de fato—e cada um deles—uma cabeça de cavalo. “Cara de cavalo”, por sua vez, era o apelido de um marginal carioca, homenageado por Hélio Oiticica numa de suas peças mais interessantes e impactantes dos anos 19601. Rezende, tomando do trabalho de Oiticica apenas o significante “cara-de-cavalo” e dando-lhe, a princípio, um sentido material outro, discute e restitui ao bólide em questão (hoje, infelizmente, um dos índices da modernidade/contemporaneidade chic brasileira) o drama principal da arte: aquele do artista identificado como e com o marginal. Em duas de suas peças mais recentes, Taj Mahal e a possibilidade do amor na era do cubo espistemológico (versão branca e versão negra), Gustavo Rezende constrói um cubo a partir de módulos de mármore brancos e negros. Na versão branca, predominam os módulos de mármore de carrara, e na versão negra, o mármore belga. Observando as peças a certa distância, elas nos remetem, de imediato, a toda a tradição construtiva brasileira e da América Latina, e, sobretudo, ao rigor formal da obra do escultor Sérgio Camargo (outro índice daquela modernidade/ contemporaneidade brasileira), pelo fato desse artista ter feito uso do mármore branco de carrara e o mármore negro belga.

Porém, aliado à consciência de que o cubo é o símbolo maior da lógica e da razão, todo esse primeiro conforto que as peças em questão nos trazem fica irremediavelmente comprometido quando percebemos que a matriz dos módulos que compõe as peças—e que nelas está embutida—é uma caixa do antidepressivo da marca Prozac. O drama da arte inserido por Rezende nessas peças, via a caixa de Prozac, como que redime o extremo formalismo embutido em alguns conceitos da estética construtiva brasileira do século passado.

De outro lado, o próprio título da obra e o fato de existirem duas versões da mesma, remetem à história de um sonho de amor jamais realizado em sua plenitude. Aliás, como o projeto construtivo no Brasil — símbolo da nossa modernidade. [Março 2001]

 

 

1 Na verdade, e paradoxal- mente, Hero é o retrato de Gustavo Rezende quando jovem, porque possui um caráter transitório fortíssimo, caráter esse ainda mais pronunciado pelo fato da peça se desenvolver não apenas no plano da fotografia
(tão próximo da pintura), mas, sobretudo, no campo temporal do aparelho, sobre o qual as fotos estão coladas. Já Retrato do artista quando jovem é, por muitas razões, um autorretrato concebido como herói. Ali o artista, acima de tudo e de todos, contempla a realidade com altivez. Nele, a busca de uma qualidade pictórica é inegável, não apenas em termos do colorido como na própria composição.
Se em Hero está presente
o tempo perceptivo da escultura, e mesmo do cinema, em Retrato... está presente
o “não-tempo” da percepção pictórica.

2 Refiro-me aqui ao Bólide Caixa. Homenagem a Cara- de-Cavalo, 1966.

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[Texto publicado no livro Gustavo Rezende: Uma antologia por Tadeu Chiarelli. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.]

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